Rasgaram as beiradas

Comeram a cidade pelas bordas. Rasgaram as beiradas. Um novo contorno se desenha, mal acabado, sem arremate, grotesco. Os pedaços foram arrancados com força,  com raiva. Sacudiu tudo! A violência e a rapidez levou à completa desordem, como papel que uma vez amassado, as fibras quebram.  Fica perceptível até mesmo pra quem tá de fora através das inúmeras imagens divulgadas à exaustão.

Aqui de dentro não reconhecemos mais os vizinhos. Ansiosos, preocupados, temos medo do desconhecido, desconhecemos e reconhecemos na estranheza daqueles tantos que não sabem a ordem dos corredores do mini mercado de bairro.  Pegamos forte as mãos das crianças para a segurança delas, ou pela segurança que elas nos passam com sua capacidade de adaptação. O espaço antes dominado, recheado de novos rostos, agora  assume nova e estranha identidade. Há uma ordem em formação que conta com olhares assustados e desconfiados. Na conduta social em ascensão, imposta do dia para noite, todo mundo age sem saber como agir, confia, desconfiando.

Há pouco quando nos encontrávamos nas ruas dizíamos um displicente e corriqueiro "Tudo bom?", hoje substituído pelo soturno "Tu tá bem? A água não chegou na tua casa?” Às vezes, buscando fôlego para seguir nós, os não atingidos diretamente, fugimos da realidade e andamos só pelas partes não rasgadas. 

Os carros rebocando barcos, teimam em nos jogar pro aqui e agora, mas ainda assim encontramos algo de conhecido naquelas avenidas, que trazem conforto, nos recolocam em um passado recente onde pensávamos que as bordas eram intransponíveis. Então, com a cabeça distraída, em um lapso de memória encontramos alguém e perguntamos displicentes, ultrapassados: 

- Tudo bom? 

E a resposta coloca de volta os pés na lama, no chão instável que levará muitos anos para se firmar novamente e talvez nunca mais seja o mesmo:

- Perdi tudo! Não sobrou nada!

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