Memórias de um útero sintético

 

Acho que eu tinha uns 6 anos e devia andar perguntando muito de onde vem os bebês quando eu e meus pais fomos a uma exposição interativa temática sobre o corpo humano feminino. Ou, talvez, minha mãe que sempre me despejou informação reprodutiva e sexual, provavelmente com medo de eu ser uma ignorante, quisesse desesperadamente me fazer entender o funcionamento do meu corpo e a concepção humana. Nessa época já havíamos lido exaustivamente, os clássicos da educação sexual do fim do século passado, “De onde viemos” e “O que está acontecendo comigo (ainda que nada estivesse acontecendo, era preciso estar preparada). Não tenho certeza, mas talvez a mostra tivesse alguma ligação com o dia internacional da mulher.

Uma exposição interativa na metade da década de oitenta deveria ser algo bastante rudimentar, mas a lembrança que tenho é tão tecnológica que cheguei por um tempo a pensar que isso não tinha de fato acontecido e era uma memória criada por mim. Estes dias resolvi perguntar pra minha mãe se tínhamos realmente feito o tal passeio e ela me confirmou que sim. Ufa! Pelo menos não estou criando falsas memórias.

O evento basicamente consistia em uma gigante boneca inflável de entrar, não com o conceito sexual, mas sim técnico e lúdico, algo como um castelo inflável em forma de mulher. No mínimo inusitado e criativo. A primeira recordação que tenho da experiência é eu com minhas perninhas roliças de meia calça branca, joelhos juntinhos sentada em um molar que servia como banco. Entrávamos pela boca e ali na arcada dentária inferior era uma espécie de recepção ao grupo de visitantes. Então, éramos conduzidos boca adentro, em um passeio guiado, recebendo informações de forma muito didática. Lá pelas tantas, não sei por qual conexão, chegávamos ao útero. Nele tinham várias telas com imagens explicativas do processo de concepção e talvez tenha sido ali dentro do útero inflável que eu tenha realmente compreendido a lógica da formação de um ser humano. Sem história de sementinha, sem ficar me perguntando se eramos meio planta, ou tentando compreender como a sementinha se transporta de um lugar ao outro. Meu pai que sempre ficou meio sem graça com esses assuntos deveria estar da cor do útero, mas como tinha uma luz meio penumbra para podermos enxergar as “moderníssimas” telas, não se percebia. Papai disfarçou seu constrangimento na penumbra de um útero de poliéster.

Naquele dia entendi que a nossa anatomia era distinta. Um órgão nos fazia fisicamente completamente diferentes dos homens. As diferenças sociais, aquelas construídas e não naturais, eu fui descobrindo aos poucos ao longo da vida, aos tropeços.

Não me lembro ao certo por onde saímos da boneca, mas considerando que éramos sólidos, não havíamos sido todos gerados naquele útero sintético, seguindo a lógica, fisiologicamente só havia um lugar para sairmos.

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