A moça era transmorfa

 

Eu acho muito interessante a capacidade criativa que nossos cérebros têm. Quem nunca se deparou com alguém gaguejando e tentou completar o que era dito? Não se tem a menor ideia do que a criatura quer dizer, mas na ânsia de ajudar, na verdade atrapalhando, complementamos. Alguém gagueja no “da-da” e a tendência natural e mal educada que habita em nós fica tentando acertar, mesmo que mentalmente, o que a pessoa diz, e seguimos: Danada, danone, dali, dama, davi, data. É uma tríplice aliança entre criatividade, curiosidade e ansiedade. Deve ser por isso que o jogo imagem e ação faz tanto sucesso, você tem uma pista e precisa adivinhar o resto.

Isso não se dá só em relação a palavras ou sílabas que são ditas, fazemos em relação as pessoas e lugares também. Quantas vezes, antes de existir rede social e a possibilidade de stalkear pessoas, alguém falava de um desconhecido e ficávamos imaginando como seria esse ser abstrato até conhecê-lo pessoalmente.

Durante os últimos anos com uso das máscaras essa possibilitada foi reinventada. Cada cara mascarada era meia folha em branco para ser preenchida a nosso bel prazer. Foram tantos rostos imaginados e não necessariamente reais. Depois que, recentemente, caiu o uso obrigatório das máscaras em hospitais e clínicas descobri que a secretaria de uma profissional que me atende há mais de um ano não tem a cara que eu imaginava. Fiquei chocada!

Durante todo esse tempo eu criei um nariz e uma boca imaginária na minha cabeça que nada tem a ver com a realidade. Não é nem melhor, nem pior, só não é a pessoa que eu compus. Me senti tendo preenchido todas as letras erradas no jogo da forca, sabe? Algo como se a palavra fosse foca e eu tivesse achado que era faca ou fica. A composição mudou todo o sentido. Obviamente não em relação ao trabalho dela que segue sendo atenciosa e simpática, mas exigiu um reconhecimento de quem era aquele ser. Eu reconheci os tênis, a voz, mas não a cara. Precisei reassociar ela ao avatar que criei.

Em dado momento enquanto ela falava comigo me vi fazendo um esforço pra prestar atenção, já que me perdia entre os meus pensamentos: gente quem é essa pessoa? Será que comento que ela é completamente diferente sem máscara? Melhor não, talvez ela considere isso uma crítica. Vai que ela pense que eu sou uma compositora de rostos desconhecidos, maluca que fica imaginando como são as pessoas por baixo da máscara? Melhor não, melhor não comentar, pode parecer coisas de voyeur de máscara. Melhor disfarçar e fingir que nem notei que ela tá sem máscara! Tomara que ela além de ser transmorfa, não seja capaz de ler pensamentos.

E nessa corrida doida de pensamentos, eu já tava gaguejando e ela tentando completar o que eu dizia, embora eu nem seja gaga, mas fiquei nervosa.


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