Podia ser a minha filha

 

Esse blog foi batizado de “Bom dia Sociedade Machista” como uma piada em relação aos jornais diários do tipo “Bom dia Brasil”. Em conversa com amigas em que falávamos sobre alguma situação machista cotidiana (sim, o machismo é cotidiano) eu, fazendo graça, imitei algum apresentador de noticioso dizendo: Bom dia Sociedade Machista. Mais de dois anos se passaram e desde então sigo por aqui escrevendo semanalmente crônicas recheadas de ironia e sarcasmo trazendo de forma lúdica, às vezes revoltada, coisas que me fazem parar e refletir dentro dessa sociedade doida que nos tornamos. A ironia e o sarcasmo são defesas minhas para encarar a vida. Rir e fazer rir me fazem mais leve. O mundo anda tão pesado que às vezes tirar uma onda da situação alivia, mas essa semana não tem como trabalhar com ironia e sarcasmo.

A segunda feira acordou mais enublecida com a notícia da menina moradora de Santa Catarina que com apenas dez anos de idade foi estuprada, engravidou, teve seu direito ao aborto negado e foi, então, mais uma vez violentada pelo estado brasileiro, através da juiza que deveria estar ali para assegurar seus direitos. Santa Catarina é o estado vizinho ao meu. Dez anos tem a minha filha. A menina podia ser a minha filha. Isso não sai da minha cabeça.

No dia seguinte já tinha estourado a notícia da promotora que foi brutalmente agredida por um colega no local de trabalho. Desde então não paro de lembrar de uma passagem de “O Conto de Aia” em que Offred, a personagem principal, comenta que o leitor deve estar se perguntando como ela não fugiu do país antes que a República Gilead estivesse estabelecida. Ela explica que tudo foi acontecendo aos poucos, ela e pessoas próximas não imaginavam que as coisas chegariam até aquele ponto. Até que um dia as mulheres foram expulsas de seus trabalhos e tiveram suas contas bancárias confiscadas pelo novo regime. A essa altura, fugir de lá era quase impossível e ainda que eles tenham tentado, não conseguiram. Então, Offred, o marido, a filha que tinha cinco anos, a mesma idade da minha filha mais moça, foram separados e a partir daí cada um foi encaminhado para o destino que lhe foi imposto pelos fundamentalistas e seus corpos não mais lhe pertenciam. A menina podia ser a minha filha. Isso não sai da minha cabeça

Já devo ter falado isso por aqui, mas tem me causado um arrepio na espinha a assustadora semelhança que o Brasil tem assumido com Gilead. A notícia da menina de dez anos vazou a partir da sessão em que a juiza tenta dissuadir a criança e a mãe de seguirem com o aborto. Na República fundamentalista onde Offred vive os homens governam, mas as ações do estado são legitimadas por executoras mulheres. São elas que decidem o destino das mulheres que devem ser estupradas para procriar, são elas que preparam o “ritual” da violência, são elas que ensinam as meninas como se comportar para viver naquela sociedade sob aquelas regras. A juíza catarinense que executa a violência ao tentar forçar uma criança a ter um filho resultado de um estupro, o faz em nome de um Brasil sexista e misógino. Da mesma forma que fez a então ministra Damares há uns dois anos e que deve acontecer com muito mais frequência do que as manchetes de jornal revelam. A menina podia ser a minha filha. Isso não sai da minha cabeça.

O estado distópico pensado por Margaret Atwood não parece tão distópico para mulheres que vivem no Brasil. Nascemos sentenciadas e aguardamos para descobrir se nossa pena será cumprida. Nossas filhas nascem sentenciadas. A maior pena que se pode infligir a uma mãe é fazê-la ver um filho sofrer. A menina podia ser a minha filha. Isso não sai da minha cabeça.

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