Apodreceu

 

Viver no Brasil, tem me trazido a sensação de acompanhar alguém, por quem tenho estima, em seu leito de morte. A doença se alastrou de tal forma que não vejo possibilidade de melhora, ainda que eu tenha esperança. Por isso dizemos que a esperança é a última a morrer. Em alguns momentos me policio, não quero transparecer o meu desânimo com o quadro para os outros entes queridos do meu amado moribundo. Não quero que eles se contaminem com o meu pessimismo. Logo eu que costumo ser tão otimista pensando assim?! Quase dá vergonha.

No entanto, nada mais me choca. Leio que há um plano nefasto de destruição do Estado em execução com endosso dos militares da reserva que se estenderá até 2035. Não me surpreendo. Em outro lugar qualquer leio que a primeira-dama “quer tomar conta do congresso”. E penso "aham". Ouço as infindáveis ameaças às eleições. Interiorizo a informação.

Nada mais me faz bradar com ganas. Sinto até saudade de quando me indignava com algum absurdo. Os disparates são tantos que se tornaram ordinários, comuns, corriqueiros. Às vezes em que externalizo o que penso sobre o que se passa com o país me sinto repetitiva. Seis anos dizendo: vai dar merda! Vai da merda! Talvez eu não pareça repetitiva, eu realmente esteja sendo. Não, não vai dar merda. A merda já deu faz tempo. Falta a descarga pra descer. Essa tá difícil de dar.

Não adianta meu moribundo tá apodrecendo, tá apodrecido. Às vezes em meio ao cansaço, ao abatimento, olho pro céu e vejo uma estrela brilhando. Uma única estrela meio velha, meio lusco-fusco, mas ainda assim uma estrela, que emana certa luz em meio à “obscuridão” e me traz lampejos de esperança. Mas em meio a esse brilho que faz força para se manter desperto, o cheiro de pútrido do pobre moribundo é tão evidente, tão entranhado que me dá vontade de fugir, correr, achar uma porta de saída. Ir pra bem longe e esperar que um milagre aconteça. Daí me lembro que não acredito em milagres. Me resta aproximar, mirar a estrela, apontar pra ela e mostrar para o maior número de pessoas que der, dizendo: Sim, eu sei que ela nem é tão brilhante. Tenho consciência que o foco dela já tá meio difuso, mas só tem ela nesse momento. Tem que deixar brilhar essa para que outras possam nascer daí, porque se não vai ficar impossível viver na “obscuridão” em meio ao cheiro e aos gases tóxicos que a putrefação libera.

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