Três amigas e uma calcinha viajante

 

Há um tempo uma amiga esqueceu uma calcinha aqui em casa. Sim, eu sei, dizer que alguém esqueceu a calcinha na sua casa pode parecer estranho, mas considerando o número de sutiãs que já perdi pela vida sem envolver nenhuma situação maliciosa e pés de meia que somem dentro da própria casa, acho até bem ok a pessoa esquecer a calcinha. No dia do abandono da underwear, tínhamos tomado banho de piscina e na troca de roupa de banho, roupa de rua, sobrou a peça íntima.

Como boa amiga que sou, coloquei a calcinha pra lavar antes de devolver. Eis que passaram-se semanas e eu nunca mais lembrei de devolvê-la. Fiquei menstruada, com cólica, dor de cabeça, abri a porta do armário e me deparei com a calcinha molinha, já amaciada por outra bunda, pronta para ser usada. Revirei mais um pouco a caixa das minhas calcinhas na esperança de encontrar outra com cara de tão confortável como aquela, mas não encontrei. Quando a gente é criança aprende que não se pega emprestado escova de dente, nem calcinha. Cada uma deve ter a sua. Então, pensei, tendenciosamente: se eu usar essa calcinha ela passará a ser minha, afinal não se deve ficar usando calcinha das outras. Não resisti aos encantos dela e vesti. Pensa em uma calcinha boa! Nem que eu quisesse eu devolveria ela para sua dona originária. Ela automaticamente passou a fazer parte de mim. Nós, mulheres, passamos décadas experimentando calcinha fio dental, calcinha que segura a barriga, calcinha que levanta a bunda, calcinha de renda que pinica, mas chega um momento na vida que nos damos conta que o bom mesmo é calcinha que a gente esquece que ela existe.

Depois de desenvolver toda essa relação íntima com a underwear, resolvi assumir publicamente para a amiga que eu não a devolveria. Eis que ela me faz a maior e melhor revelação de todas. Aquela calcinha também não era dela, era de outra amiga nossa. A outra amiga em questão, emprestou uma mala e dentro estava a calcinha. Tal qual eu fiz, a amiga que me passou a calcinha, lavou e ia devolver, mas em um dia de desespero calcinhístico resolveu usá-la e também se afeiçoou a peça.

Senti como se nós três inconscientemente estivéssemos fazendo uma versão quarentona meio lado B do roteiro “quatro amigas e uns jeans viajante”. Três amigas (pelo menos esse é o número de pessoas que eu imagino que tenham usado a calcinha, tenho medo que ela esteja circulando desde a década de 90, melhor não pensar, porque começo a ter certo nojinho) que vivem correndo contra os boletos e torcendo para que o dia tenha mais de vinte quatro horas para conseguirem dar conta da vida, criam uma irmandade, sem saber, através de uma calcinha que possui os poderes mágicos de ser cômoda, se adequar a qualquer bunda e mudar de amiga para amiga por conta própria sem que elas precisem fazer ajuste algum em suas conturbadas agendas para manterem contato. Quem está com a calcinha nunca mais consegue vesti-la sem lembrar das outras que já usaram. A peça íntima também tem a capacidade de libertá-las de padrões estéticos impostos pela indústria da moda, deixando suas bundas e barrigas libertas.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Fica bem 2023

A pontezinha do Sakae's

Rituais de final de ano