O esvaziamento do tesão ideológico

 

No final de 2018 eu e algumas amigas resolvemos fazer uma camiseta para a virada do ano. Entre muitas frases pensadas, a eleita foi “#euavisei”. Já havíamos passado pelo “ele não” e ele estava ali prestes a ser empossado. Já tínhamos gritado, fascistas não passarão, e eles passaram. Não tinha muito o que dizer para o ano de 2019, além de #euavisei.

Algo dentro de mim, possivelmente meu cérebro, me fez usar essa camiseta à exaustão. Eu avisei tanto, mas tanto que ela chega ao final de 2021 rota, furada, gasta, se parecendo bastante com a situação econômica e social do país. Não dá para negar que é a representação de um período histórico brasileiro. Ficou em um estado tão ruim, tal qual o Brasil, que não dá mais para usar na rua. Talvez, desse para dormir com ela, mas isso não faria sentido nenhum. Quem dorme comigo não precisa ser avisado de nada, até porque se precisasse acho que não dormiríamos juntos faz tempo.

Pensei em usá-la como pano de chão, mas também não faria sentido. Seria como dizer: Eu avisei que tu ia ter que limpar a casa e isso seria um aviso para mim mesma, de algo que eu já estou cansada de saber. Outra possibilidade, seria dar a camiseta para alguém que precise de doações, mas seria no mínimo grosseiro com a pessoa que está passando necessidade receber um negócio escrito #euavisei. Pareceria até que sou defensora da meritocracia no país da desigualdade social.

Essa semana acho que encontrei o destino ideal para minha rota camiseta. Ana, uma amiga hipotética que pode ser uma ou várias ou nenhuma, ou você que está lendo ou outra pessoa qualquer, queria muito casar. Sonhava desde de criancinha com seu grande dia. Lá pela década passada, quando finalmente achou que tinha encontrado seu par ideal, programou todo o casório e a vida nos mínimos detalhes. Esqueceu apenas de uma coisa. Uma coisa que seria vital para seu casamento nos anos seguintes. Nunca fez seu parceiro passar por um teste de orientação política. Não julgo Ana, na época isso não parecia algo essencial para a relação dar certo, mas tudo mudou quando lá pelos idos 2016 ele vestiu uma camiseta da CBF e foi pra rua. A coisa só piorou, quando no ano passado ele assumiu ter votado na última eleição presidencial no Amoedo, que considerando o número de votos declarados verbalmente deveria estar no comando do país. A cada ano que passava desde o golpe de 2014, Ana via seu tesão ideológico pelo companheiro se esvair e o tesão ideológico é algo que não se pode perder, é ele um dos principais elementos que dá liga em uma relação conjugal.

Esse ano a coisa degringolou. Cada vez que eles abastecem o carro e ele comenta sobre a alta da gasolina, ela não resiste e pergunta: Em quem tu votou? E isso serve pro gás, pro super, pra tudo. Para completar, ele comentou na mesa do almoço de domingo que a solução dos problemas nacionais passam pela eleição de um certo juiz de voz estranha, que não é mais juiz, porque achou que valia a pena participar do atual governo, que ele, enquanto ainda juiz, foi essencial para eleger. Ana, a conja, quase surtou. O casal claramente sofre de incompatibilidade política. O que pode ser bem grave quando se quer construir uma vida junto, mas que por vezes as pessoas só percebem quando vivem.

Eu como sou uma boa amiga darei para Ana, a amiga hipotética que pode ser qualquer pessoa, uma plaquinha confeccionada a partir da camiseta rota escrito “#euavisei”, que caiba na bolsa e assim ela não precise gastar o cuspe, possa apenas levantar os dizeres. Se você for a Ana, ou conhecer alguém que seja Ana, por favor me avise.

Comentários

  1. Olha, Cris. Ninguém está livre de passar por isso. Dói mesmo na gente conviver com tanta ignorância ainda mais com quem se gosta de verdade. Mata no peito, amiga, e segue adiante com teu afeto pelas pessoas e pelas coisas boas da vida. Beijão solidário!

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