Atos de caridade

 

Fim de ano batendo na porta, um monte de gente pensando em fazer uma boa ação e preciso dizer: odeio caridade. Não. Acho que assim pega mal. Fica melhor: tenho certo ranço de caridade. É verdade que é um ranço bem forte, mas vamos lá entrar no clima natalino e não ser tão desagradável dizendo que eu odeio, embora eu enfaticamente não goste.

Não é um ranço gratuíto. O que me incomoda nas ações de caridade, e nessa época do ano elas surgem que nem ondas de pandemia, é que me parece que as pessoas que praticam o ato fazem muito mais para aplacar sua própria culpa cristã e o fazer algo por alguém se torna mais pra si do que para o próximo. Acaba sendo algo que nos deixa confortável em perpetuar um sistema econômico falido que explora uma imensa maioria e faz com que os próprios explorados se sintam menos explorados por poderem doar o mínimo dos mínimos para quem não tem nem o mínimo e que sem esse mínimo não tem forças nem se quer para se revoltar pela condição que lhes impõe.

Vamos e venhamos, doações natalinas ou localizadas em qualquer outra data específica, não resolvem a vida de ninguém. No máximo dão um espaço rápido para dar uma respirada, mas passa logo e a necessidade bate de volta à porta. Esses dias passei por um bairro dito “nobre” de Porto Alegre e vi um morador de rua, como tem sido cada dia mais comum nas cidades brasileiras. Me chamou a atenção o fato dele estar vestindo um tênis Adidas e uma bermuda Oakley ambos em bom estado. Marcas reconhecidamente caras, que devem ter chegado por meio de um ato de caridade de final de ano. Veja bem, não tenho nada contra ao fato dele estar vestindo essas marcas, pelo contrário, mas não é por estar usando um par de tênis de marca que essa pessoa está em pé de igualdade para concorrer com qualquer cidadão pelos melhores salários do mercado e está apto a reerguer a vida se assim quiser. Não adianta nada doar coisas materiais pontualmente, chegar na hora das eleições e votar em propostas que não focam no problema de redução de desigualdades.

Para não dizer que desacredito por completo nas ações de caridade, aquelas que são feitas de forma orquestrada e configuram ato de resistência continuo, me despertam interesse. Também simpatizo com ações específicas organizadas em caso de catástrofe. Dito isso tudo, se você quer mesmo mudar a realidade das pessoas e se sente mais confortável praticando atos de caridade, vá em frente, mas em 2022 honre com o discurso e eleja quem pensa na sociedade com um todo e não no que será melhor, única e exclusivamente, para você e para o seu bolso ou para sua “categoria”. Aliás, posso garantir que o seu bolso ficará melhor em uma sociedade mais igualitária, e de quebra sua consciência também viverá melhor. Faça o bem, mas de forma coerente. Obrigada! De nada!

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