Auto sabotagem

 

No bairro onde moro tem um mercadinho, como em muitos bairros. O daqui de perto pertence a Leidiane, apelidada pelos conhecidos de Leide (uma lady abrasileirada). Gosto dali porque é possível comprar 10 cacetinho, 200 gramas de queijo lanche e um ventilador paraguaio sem dificuldades (nem de entendimento, nem de variedades de produtos). O que não tem dá pra encomendar que no máximo em quarenta e oito horas ela resolve. Por exemplo, no verão eu precisava de boinha de braço pra minha filha menor, mandei um whatsapp perguntando se tinha e ela me respondeu: “Agora não, mas se tu esperar até o final da tarde eu consigo.” Dito e feito final de tarde ela me avisou que podia ir buscar as boinhas.

Sempre usei o mercadinho, mas na pandemia ele tomou proporções de um Carrefour na minha vida. Minha filha mais moça quando passa na frente de qualquer mercado diz: “Oh aqui tem outra Leide!” Minha mãe vai passear pelos curtos cinco corredores do estabelecimento como atividade lúdica. Meu marido faz estoque de brownies da Leide. Minha filha mais velha economiza mesada e todas as moedinhas para gastar nos brinquedos de qualidade questionável e balas.

Esses dias acabei de dar minhas aulas e me lembrei que precisava ir ali pagar a conta. Sim, além de tudo a Leide tem crediário! Antes era caderno, mas ela evoluiu e agora é tudo informatizado. Meu marido tinha saído com as crianças e eu pensei: “É agora que vou na Leide, sozinha, sem ninguém para me pedir nem se quer um iogurtezinho!” Pensei por um breve momento em sair que nem a Elza do Frozen batendo o pezinho congelando tudo à minha volta (inclusive os sentimentos), cantando “Let it go”, livre, leve e solta, pagar a conta e ter certeza que se eu quiser comprar um moringa de pé de cavalo de gosto duvidoso sei onde encontrar.

Logo o momento passou, lembrei que sou plenamente livre, pesada, enrolada e nem sei cantar mesmo. Estava quase saindo, me dei conta que minha mãe não tinha dado sua tradicional caminhadinha. Por um lapso de medo da minha consciência pesar, resolvi convidar ela pra ir comigo. Não era ir sozinha, mas, pelo menos, ela não me pede pra comprar iogurte e paga seu próprio ventilador paraguaio caso queira. Antigamente ela sempre apressava minha avó porque a minha avó ficou muito lenta quando mais velha. Hoje ela é a minha avó. Faz tudo em operação tartaruga. Eu sou ela ontem, que fico apressando.

Depois de uma lentaaaaaa colocaçãoooooooooo de tênis, um vagarosoooooo posicionamentooooooo de máscara, pegar com todaaaaaa a calmaaaaaa a bengala, ela estava pronta para me acompanhar. Botamos o pé pra fora de casa e ouvi o nosso carro vindo lá no final da rua. Pensei: “Pelamor da vaca jersey! Eu só queria pagar a conta! Agora vou ter que ir com a família inteira, comprar iogurte, balinha, pãozinho, ouvir que todo mundo só quer um brownizinho”.

Meu medo da consciência pesar se dissipou e comecei a acelerar ainda mais a véia: “Vamos mãe, vamos que eles tão chegando!”. Ela claudicante e o mais rápido que conseguia (o que ainda assim é um tanto lento) me dizia: “Não olha pra trás!” O que não é a experiência materna???? Claro, o contato visual poderia fazer minha consciência pesar. Quando dobramos a esquina meu marido me ligou e disse: “Por que tu tá fazendo tua mãe andar rápido? Nós estamos indo alcançar vocês!”

Me auto sabotei e fomos os cinco ao mercadinho. Paguei a conta e fiz uma nova conta. Acho que vou encomendar pra Leide uma capa da invisibilidade do Harry Potter e pedir para ela colocar na conta. Às vezes, bem de vez em quando com uma certa frequência, dá uma vontade de ficar hipoteticamente invisível por uns quinze minutos. Tempo suficiente para respirar e ainda assim me manter no controle.

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