Serial Killer de gatos

Na diagonal da minha casa mora um senhor de uns setenta e vários anos. É a pessoa mais só que conheço. Creio que ele nem deva ter sentido o distanciamento social, pois já fazia há anos. Ninguém o visita. Não fala com ninguém. Por anos teve o cabelo pintado de acaju, atualmente está pintado de loiro gema de ovo. É a casa mais limpa e arrumadinha da rua. A falta de convívio social faz com ele tenha tempo de pintar as grades umas seis vezes ao ano, cortar a grama duas vezes por semana, pintar o muro e o piso outras tantas vezes. As janelas estão sempre fechadas, imagino que seja para não entrar poeira da rua. Ele tem um monza da década de 1980 vermelho todo lustradinho que ele não anda, só tira da garagem de vez em quando, liga o motor, desliga e guarda. Já até pensei em oferecer a ele nossa grade para pintar e nosso carro para lavar e lustrar, o estranho vizinho parece bem mais competente e com mais tempo que nós para essas coisas.

Toda essa estranheza lhe rendeu fama de vilão da rua. Não entre as crianças, mas entre os adultos mesmo. Reza a lenda que ele não gosta de animais e andou envenenando gatos. Não sei se isso é verdade, mas tive um felino que morreu em circunstâncias suspeitas. Uma vez, enquanto ele molhava a grama pela enésima vez no dia, o peguei com a boca na botija dando um jato de água na nossa gata que nos acompanha tal qual um cachorro na rua (acho que ele pensava que ela estava desacompanhada). Enfim, não sei até que ponto é verdade ou não, mas o fato é que o tal senhor é estranho mais que o normal aceitável de estranho.

Às vezes corro em volta da praça sem movimento que tem na frente de casa que é exatamente ao lado da morada dele. Esses dias estava eu lá correndo quando passo pelo lado da grande muito bem pintada e o vejo pegando uma escada, uma vassoura e uma mangueira. Pensei com meus botões: Que será que esse velho tá inventando? Na volta seguinte ele já estava em cima do telhado, molhando as telhas, as ensaboando com algum detergente, esfregando de vassoura, tudo isso calçando um par de havaianas. A próxima volta que dei foi imaginando as tiras dos chinelos arrebentando, aquele velho escorregando da porcaria do telhado, se esborrachando no chão e o pior: não tinha ninguém em volta, eu teria que chamar uma ambulância para o vilão da rua.

Por mais que eu saiba que pode ser que talvez ele seja um serial killer de gatos, por mais que eu more aqui há uns bons anos e não saiba nem sequer o nome dele, eu e minha consciência (por que que alguns de nós temos tantas e outros nenhuma?) não poderíamos deixar o tal velho estrebuchando no chão. Corri as outras dez voltas que eu tinha pra dar com o c* na mão, bem rápido porque eu tinha certeza que mais uma volta e eu encontraria o suposto vilão da rua estabacado no chão.

Perguntei para minha consciência se antes de prestar socorro eu podia gritar pela grade: O senhor votou em quem em 2018? O senhor envenena gatos? Minha consciência disse que, dada a conjuntura, não via problemas desde de que dependendo da resposta para qualquer uma das perguntas eu chamasse a SAMU anonimamente, dissesse que nem era tão urgente assim e saísse o mais rápido possível dali. Acabei de correr, as tiras não se soltaram e ele não caiu. Respirei aliviada (porque parei de correr tão rápido e não precisei socorrer ninguém). O que não faz a ansiedade e a imaginação fértil com a gente!

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