Ortunho

 

Lá pelos meus nove anos eu brincava muito com uma coleguinha de colégio que morava perto da minha casa. Ela tinha dois cachorros dobermanns e uma poodle gigante. Os dobermanns eram imponentes, não diria bonitos, porque essa raça de cachorro sempre me lembra aqueles marombados burros de academia, o que lhes tira um pouco da beleza, mas sem dúvida chamavam a atenção. A poodle gigante era linda, toda pomposa, com pelo que parecia algodão.

Em certa ocasião a poodle entrou no cio, os dobermanns ficavam presos no canil, mas obviamente um belo dia um deles deu um jeito de fugir e no pátio teve um encontro tórrido com a fina poodle que tava mais pomposa do que nunca. Eis que algum tempo depois nasceram não sei se poodermanns ou doodles. Uma ninhada com vários cachorrinhos que não tinham a imponência do pai e nem a beleza da mãe.

Para os pais da minha coleguinha isso deve ter sido um problema, porque os bichinhos não eram vendáveis e quase não eram doáveis por serem muito feinhos. Poucas pessoas se encantariam pelos pobres cãezinhos, sem dúvidas os mais estranhos que me lembro de ter visto na vida.

Meu pai sempre foi muito cachorreiro e ficou com pena do pai da amiga que tinha uma enorme ninhada e precisava achar lar para todos. Então, ele falou com o meu tio (que também sempre foi super cachorreiro) e eles decidiram ficar com um filhote para levar para a fazenda dos meus tios. Lá precisavam de cachorros, nem importava muito a raça ou a beleza, para serem ovelheiros.

Me lembro que buscamos o tal filhote que tinha as pernas compridas como de um dobermann, pelagem que não era nem de poodle, nem de doberman e um grande tufo acumulado no queixo que parecia um cavanhaque, estranhíssimo. Meu pai e meu tio deram o nome de Ortunho para o pequeno filhote em homenagem a um zagueiro do Grêmio. Diziam que se parecia com ele, não lembro bem se era pelas pernas compridas ou por ser meio prognata, ou por ambos.

A fazenda dos meus tios fica em Uruguaiana. Fizemos uma viagem familiar para levar Ortunho. Meu pai, minha mãe, eu e o cachorrinho fomos no Opala do meu pai. No Monza do meu tio foram minha tia, minha prima, meu primo e a mãe da minha tia.

Lembrando da nossa viagem não posso deixar de parafrasear uma amiga que é nascida na cidade da fronteira: Mas é longeeeee Uruguaiana!!! Por favor, uma estrada cheia de caminhões, meu pai ultrapassava dez jamantas e eu pedia para fazer xixi. Nosso comboio parava todo em um posto, descia todo mundo, incluindo Ortunho, para esperar o meu xixi. Lá pela metade da viagem, a minha prima dizia no banheiro: Faz todo o xixi, até a última gotinha pra gente não ter que parar de novo! Não adiantava, aquela estrada lotada de caminhão, meu pai maneta como só ele, me deixava nervosa e dali a pouco eu pedia novamente para fazer xixi. Assim demoramos uma eternidade pra chegar, possivelmente ultrapassando sempre os mesmos dez caminhões, porque cada vez que parávamos víamos os caminhões que havíamos deixado para trás passando por nós.

Quando depois de horas dentro daqueles carros atravessamos a porteira da fazenda meu tio anunciou que iria na frente para acertar o caminho porque havia chovido muito e não queria que o carro atolasse. Andamos, se muito duzentos metros, e meu tio atolou o monza. Meu pai que vinha na sequência atolou o Opala. Descemos todos, inclusive Ortunho, para ajudar a desatolar os carros.

A mãe da minha tia era uma mulher super enfeitada, andava onde quer que fosse com os saltos mais altos que eu conheci, o que não a impediu de nos ajudar a tentar sair daquela situação. Eis que quando o Monza do meu tio finalmente desatolou ela e toda a sua roupa decorada foram cobertos de lama, incluindo os sapatos de salto altíssimo. A lama podia ter atingido qualquer um de nós menos “arrumados”, mas não, foi buscar justamente a pessoa mais enfeitada do grupo.

Desatolados finalmente chegamos na casa da fazenda. Apresentamos Ortunho ao capataz, que observou o animal com olhar analítico, virou pra gente e disse: Dizem que o coisa ruim era assim quando criança. Os adultos riram, eu na época não entendi muito bem, mas gravei a frase.

Tempos depois fiquei sabendo que Ortunho não havia se adaptado ao trabalho de ovelheiro. Matava e comia as ovelhas. Meu tio disse que ele foi doado, mas nunca tive certeza se esse foi realmente seu destino, talvez tenha sido sacrificado, ou talvez tenha se tornado integrante de algum governo de alguma república de bananas. Quem sabe?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Fica bem 2023

A pontezinha do Sakae's

Rituais de final de ano