Ensino Domiciliar

 

Quase dezesseis meses de pandemia. Sigo saudável, me contrapondo aos esforços federais. Nos últimos tempos descobri muita coisa sobre a vida. A minha vida. A vida dos outros. Sei mais do que eu queria. Sobre os outros e sobre mim.

Talvez o que tenha me causado mais impacto (fora o básico: desgoverno, genocídio, descaso e etcs) tenha sido o homeschooling, ou ensino domiciliar. Nessa caminhada, incerta e nebulosa, com minhas filhas aprendi que gritar e chorar (com a criança ou sozinha no banheiro, já testei as duas opções) não são ferramentas didáticas.

Descobri que procrastinar é uma atividade inerente ao ser humano. Nascemos procrastinando e ao longo da vida aprendemos (ou não) a não enrolar para fazer as coisas. Se a pessoa tiver que escrever uma redação, ela não o fará antes de cortar uma borracha em 16 pedacinhos, pintar os dezesseis pedacinhos de várias cores, picotar papel, desenhar toda a mesa de trabalho e só fará a redação sob ameaça de perder o celular.

Outra coisa importante que concluí é que o ensino a distância não acaba com a cartolina que a criança precisa levar na segunda-feira para o colégio e avisa no domingo às 22h. Dia desses minha filha esqueceu de fazer a atividade de Educação Física. Lembrou na hora que deitou na cama. Eu achando que era algo como fazer uns polichinelos, disse que ela deixasse para o outro dia. No dia seguinte, meia hora antes de ter o encontro on-line com a professora, ela me avisou que a atividade consistia em fazer um jogo de sucata. O lixo seco tinha acabado de passar. Comecei a catar coisas que nem louca pela casa. Eu e ela tomávamos os restinhos de refrigerante no gargalo, desenrolávamos o papel higiênico, tudo para gerar material para que a fofa fizesse seu jogo a tempo.

Ser mãe já é cargo demasiado pesado para carregar, quanta gente precisa de anos de análise para superar os traumas que uma mãe pode causar, tentando ser só mãe? Ser mãe e ter que ensinar conteúdos que vão além do âmbito materno é exaustivo. Nunca dá para ter certeza se aquele pequeno ser humano está aprendendo, está se fazendo de bobo ou se está vendo pela janela uma borboleta voando. Aqui em casa a coisa chegou a tal limite de desgaste de ambas as partes que criei um contrato e fiz a cria mais velha assinar. O contrato basicamente lhe impõe responsabilidades por sua aprendizagem e lembra que sanções serão executadas em caso de não cumprimento das atividades. Não sei se custará anos de análise ou algo assim, mas tem sido efetivo.

Eu poderia ser simplista ao falar de homeschooling e dizer que descobri que não funciona, o que é parcialmente verdade. Pode funcionar em regime de exceção (como vivemos agora), mas demanda muita energia e exige muito conhecimento do tutor, não só em relação ao conteúdo, mas também em práticas pedagógicas. O ensino (embora muitos discordem) não pode ser entendido como um sistema bancário, ele engloba muitas abstrações e sutilezas que desconhecemos. A forma como cada criança aprende é única. Também não é uma melhor alternativa tentar replicar para uma tela o modelo de escola que já está ultrapassado há uns 50 anos. É como tentar criar realidade virtual com um joystick de Atari.

Outro ponto importante é que o ensino em casa priva a criança do convívio com os outros, com as diferenças e esse convívio é essencial para o desenvolvimento de habilidades sociais e pensamento crítico. Por isso a importância de escolas plurais e democráticas. Elas aproximam a criança e as famílias de realidades distintas e permitem que se enxergue além das nossas casas. Tanto a mercantilização da escola como o ensino domiciliar acabam por fortalecer uma sociedade de castas.

Não acredito que voltaremos a ser o que éramos antes da pandemia em muitos aspectos, inclusive em relação à educação das crianças. Não sei nem se em algum momento deixarei meu vício em álcool 70% de lado, mas essa semana uma das professoras da minha filha postou uma foto no instagram tomando a primeira dose da vacina, vocês não tem noção da emoção que senti. Eu olhava e pensava: gente preciso dessa mulher viva e saudável! Não dou conta disso tudo sozinha! Nesse momento uma luz no fim de um dos meus túneis se acendeu, ainda assim falta luz no caminho todo e em outros túneis. A solução dos problemas pandêmicos, políticos e sociais passam por um professor. Dói pensar que há dois anos podíamos ter escolhido um professor.

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