A vida desaparece em um mergulho

 

O dia ensolarado convidava para um passeio. Decidiu caminhar. Colocou a máscara, pegou o celular e saiu. Caminhou até a orla do lago poluído. O contato com a natureza, ainda que estragada pela mão humana, lhe era prazeroso.

Não resistiu aos encantos da paisagem. Começou a caminhar por cima das pedras que adentravam a água suja. Buscava o melhor ângulo para uma foto. Dependendo da maneira que fotografasse apareceria só a sujeira. Queria um enquadramento que lhe permitisse hashtags como #paraiso #natureza. O esforço de pular de pedra em pedra parecia valer a pena. Ali já não passava mais ninguém. Não havia barulho, só o bater da água suja, com restos de animais mortos, penas, por vezes, garrafas e latinhas.

Pulou para a pedra que parecia perfeita, mas pisou mal e escorregou em uma parte com limo. Não deu tempo de nada. Em um décimo de segundo viu sua vida ser atirada abruptamente para dentro do lago sujo e profundo. Aos poucos sua voz não era mais ouvida, talvez seus últimos dizeres tenham sido: FORA GENOCIDA, assim de forma gritada, em caixa alta. A vida submergia como que amarrada em pedras. Conforme ficava mais fundo, suas últimas lembranças se esvaíam, suas senhas eram esquecidas. O contato com o marido, com as filhas e com a mãe se apagava lentamente. O ar era substituído por água. Não havia ninguém, nem uma única testemunha de sua agonia. Nada podia ser feito.

Duas horas depois o ar voltou através de um longo suspiro. Havia chegado em casa. Pegou um celular velho e reconectou sua conta google. Agradeceu eternamente por ter sua vida armazenada em uma dita nuvem. Ciente de que seus dados eram usados de forma a lhe tornar viciada no que agora louvava como quem louva uma divindade. Anos atrás havia clicado na caixinha “aceito”, sem essa contrapartida era incapaz de saber suas senhas, de ter as fotos mais recentes de suas filhas, sequer saberia acessar sua conta no banco. Aliviada, mas surpresa com sua dependência em uma empresa que move mundos, enquanto ela por vezes parecia incapaz de se mover até uma pedra sem escorregar e deixar o celular virar sujeira de um lago poluído. Não à toa as crianças quando tinham qualquer dúvida diziam: Olha no google, mãe!

Permaneceu uns minutos ainda chocada, com essa forma de negócio que move nossas vidas e não nos traz nenhum ganho financeiro, justamente por guardar tudo que consideramos impagável: memórias práticas e afetivas.

Saiu de sua embasbaquez quando começou a contatar a empresa de telefonia móvel e lembrou que ela não havia sido criada no Vale do Silício, não tinham aprendido nada da arte de tirar a alma e fazer o cliente agradecer por isso. Alguém precisa nos trazer para a realidade e nos lembrar que não somos parte do 1% dos super ricos que dominam o mundo, pensou. Passadas mais de 120 horas sem conseguir uma explicação plausível de porque a empresa não conseguia passar seu número para um novo chip cogitou se dedicar a arte rupestre, mas ficou com medo de encontrar a central de atendimento esculpindo seu novo chip dentro de uma caverna e ter um acesso de raiva. Desde então tem vivido assim como um semi zumbi digital, com tudo que depende da internet funcionando, com tudo que depende da empresa de telefonia sem funcionar.

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