Os avós do Antônio

 

Que as mães de crianças e adolescentes são as pessoas mais sobrecarregadas na pandemia todas as mães já sabem. A gente carrega duas toneladas de responsabilidades sobre os ombros e apesar de todas as incertezas precisamos fingir que temos todas as certezas do mundo.

Desde que o coronavírus adentrou o país em voo oficial, esqueci o que é relaxar. Eu que já era toda planejadinha, o tempo todo, planejo cada uma das coisas que acontecerão. Ando sempre com um álcool 70% que me passa segurança física e emocional. Nunca pensei que eu me tornaria tão limpinha. É preciso destacar que em quinze meses de pandemia ninguém aqui em casa, entre adultos e crianças, teve sequer um nariz correndo. Sim, eu obrigo os adultos da casa a seguirem meu protocolo de higiene e quem não seguir terá que me aguentar reclamando e dizendo que está colocando todo mundo em risco.

Nem ir na pracinha da frente de casa é algo simples. Antes de sair, relembramos que se tem outras crianças não pode dividir o brinquedo, só dá para brincar com quem usa máscara e, por fim, tem que brincar a distância. Tem funcionado já arranjamos amigos, desamigos e já convencemos muita gente que para brincar precisa estar de máscara.

Esses dias minha filha mais moça estava brincando e um menino da mesma idade chegou com os avós. O casal de idosos usava máscara, mas o menino não. Ele se aproximou para brincar e a minha pequena me olhou com aquela cara de “e agora o que faço com esse guri sem máscara?”. Eu que estava em um dia tentando parecer relaxada, verifiquei que eles estavam contra o vento e com uma boa distância física, com olhar assenti que podia brincar, mas sem ficar perto.

A avó do menino vendo que as minhas filhas usavam máscara simpaticamente comentou comigo:

O Antônio não quer usar máscara de jeito nenhum.

Eu, sorrindo (tava tentando parecer relaxada), respondi:

Ele vai estranhar, mas tem que acostumar porque é uma segurança pra ele, pra vocês e pra todo mundo. As meninas estão super habituadas e sempre usam.

Os velhinhos eram simpáticos e ficamos conversando a distância enquanto as crianças brincavam. Lá pelas tantas o avô me falou que o Antônio nunca tinha cortado o cabelo, mas ele achava que estava na hora de convencê-lo a cortar. Eu sugeri para ele investir essa energia com o intuito de convencê-lo a usar máscara, pois para a saúde coletiva isso interessa mais do que o menino de cabelo curto. Conversa vem, conversa vai as crianças se divertindo o menino chegou perto do avô e disse algo baixinho ao que o avô respondeu:

  • Claro, vai lá dar um abraço na amiguinha.

Eu ouvi e quase tive uma síncope, discretamente saltei feito o homem aranha na frente do menino e disse sorrindo para tentar ser simpática:

  • Não, querido, infelizmente não é época de abraçar os amiguinhos.

O menino ficou me olhando com uma cara meio esquisita, mas desistiu do abraço.

Como assim pode abraçar a amiga? Eu não abraço minhas amigas há mais de um ano, eu não abraço minha prima irmã, bem mais irmã do que prima a mais de quinze meses, as dindas e avós das minhas filhas não abraçam as pequenas desde que a pandemia se estabeleceu! E o avô do Antônio cogita a possibilidade dele abraçar a minha pequerrucha que eu cuido, higienizo e educo para conviver na pandemia? Como assim vovô do Antônio?

Tensão dissipada (já comentei que eu tentava parecer relaxada?), crianças brincando a distância e eu explicando para aqueles avós como era importante a gente se adaptar a situação que vivemos e incorporar novos hábitos, que crianças aprendem rápido e blábláblá. Me viro pra ver a minha filha mais velha que andava de bicicleta quando ouço um barulho de embalagem plástica se abrindo e a voz da avó dizendo:

    Antônio, oferece pra amiguinha!

Rapidamente me virei e novamente Antônio conheceu minha versão mamãe aranha saltando entre ele e minha filha, mas era tarde. A pequena tinha uma pipoquinha nas mãos, vinda daquele saquinho que o Antônio já tinha enfiado a mãozinha sem ter passado nem um pouquinho de álcool, sem eu saber por onde andou a dita mãozinha antes de entrar no pacote e se esfregar nas pipoquinhas. Eu olhei pra ela e disse suave como uma psicopata:

    Meu amor, não dá para tu comer porque não podemos tirar a máscara.

Ela com a agilidade do Kung Fu Panda e a capacidade de desafio que um filho só tem em público, enfiou a pipoquinha com seu dedinho gorducho por dentro da máscara e eu de olhos arregalados, suando frio, ouvi a guloseima, potencialmente infecta, ser mastigada. O som parecia de vidro sendo quebrado.

Pronto acabou o passeio! Passei de todos os limites que me imponho. Os avós do Antônio simpáticos e plenamente ignorantes em protocolos de higiene em pandemia me fizeram tolerar mais do que eu era capaz. Demos tchau e fomos para casa.

Já era final do dia, entrei no ritmo banho e janta, o assunto parecia esquecido dentro da minha cabeça. Quando as meninas já tinham dormido, me deitei na minha cama, li, desliguei a luz e fui dormir, mas quem disse que eu conseguia? Passei a noite me lembrando da cena da pipoquinha e do barulho dela sendo mastigada, do vidro sendo quebrado. Pensava loucamente que se aquela menininha ou qualquer um da nossa casa ficasse doente eu me sentiria culpada eternamente por ter sido seduzida pelo jeito simpático e completamente sem noção dos avós do Antônio, por não ter impedido que aquela pipoquinha fosse ingerida. Meu esquema de segurança tinha sido violado e isso me fez sentir muito pior do que ter criado o meu esquema de segurança. Sou melhor assumidamente tensa do que fingindo ser relaxada, pelo menos para mim mesma. A propósito o que é relaxar? Alguma mãe de crianças e adolescentes ainda lembram o que é?

O episódio foi tão traumático que só escrevi isso depois de passados mais de vinte dias com a certeza que ninguém aqui em casa adoeceu.

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