Seres mágicos que vivem comigo

 

Há uns dias tivemos um problema com o motor da piscina. Ele não puxava mais água para o filtro. Onde a água deveria sair, saiam bolhas e mais bolhas. Cogitamos deixar a piscina virar um pântano para vivermos quando todos tivéssemos virado jacaré, mas chegamos a conclusão que a transmutação de toda a família ainda levaria tempo e resolvemos chamar o técnico para dar uma olhada.

Tudo que não queríamos era um ser externo à nossa bolha dentro do nosso pátio, mas não tinha solução. O moço veio todo paramentado e nós de longe, bem longe, ficamos observando o que acontecia. Mexe daqui, mexe de lá o problema não era no motor e sim no encanamento. Algo estava obstruindo a passagem da água. Pensamos que deveria ser um brinquedo das crianças. Até imaginei que um hipopótamo de uns 5 centímetros podia ter sido facilmente aspirado durante a limpeza da piscina.

O técnico começou a tentar desentupir, mas nada saía. O que quer que fosse estava preso no cano e precisaria abrir o piso. Esse era o veredito. Transformar a piscina em um pântano foi mais uma vez aventado e logo descartado. Partimos para a escavação. Quando o moço finalmente chegou no cano e cortou, descobriu dentro uma barbie sereia. Eu nem sabia que uma barbie cabia em um cano!

Havia sinais de que ela teve "ajuda" para entrar, pois seu rabo estava arqueado para caber no espaço. Provavelmente ela "entrou" no início do cano, foi sugada pelo motor e entalou na primeira curva que surgiu. Até a sereia parece ter ganhado uns quilos a mais durante a pandemia e anda tendo dificuldade com espaços apertados.

Tínhamos duas suspeitas de terem “auxiliado” a sereia a entrar literalmente pelo cano. Minha filha mais velha já passou da fase de colocar coisas em canos para ver o que acontece e ainda não entrou na fase de colocar coisas em canos para esconder o que acontece. Sobrava a menor, mas como aqui ainda trabalhamos com a presunção de inocência, resolvi investigar para entender o que aconteceu.

Perguntei se ela por acaso tinha colocado a sereia no cano da piscina. Ela me disse que não, que a sereia tinha entrado ali sozinha quando fugia de um marinheiro que tentava aprisioná-la. Ok! Sou completamente solidária a sereia que estava em uma clara situação de violência aquática, mas de qualquer forma o procedimento para desentalar a moça foi caro. Esse não foi o primeiro prejuízo financeiro que seres mágicos nos causaram nesta pandemia. Tivemos um problema com uma bruxa que resultou em uma smart tv 49 polegadas quebrada. Fiquei pensando como explicar para uma criança de três anos com energia acumulada durante mais de doze meses, sem acusá-la de nada, que esse tipo de acidente não deveria se repetir.

Durante uns dias tracei uma estratégia na minha cabeça para melhor passar a mensagem para ela. Nesse período li uma matéria no The Guardian contando que um vereador da serra gaúcha sugeriu pulverizar “álcool gel líquido” com a ajuda de aviões para eliminar o coronavírus do ar; o Brasil ultrapassou os 300 mil mortos pelo vírus (superamos as baixas de soldados americanos durante a Segunda Guerra Mundial); vi as mentiras que o genodente ou presidencida do país disse durante seu pronunciamento; recebi um vídeo inglês apresentando Porto Alegre como o epicentro mundial da pandemia, no qual apareciam médicos brasileiro chocados com o número de internações e consequentes mortes na minha faixa etária ou mais jovens; ouvi políticos defendendo a exposição ao vírus em prol da economia (dando opções para as pessoas morrerem de covid ou de fome, como se isso fosse opção); li inúmeras manchetes e matérias sobre a superlotação dos hospitais; fiquei sabendo de um tio de uma grande amiga que morreu em decorrência do covid que não tinha comorbidades e tem um filho da idade da minha filha mais velha; morreu de covid um amigo da minha prima; vi nas redes sociais e nas ruas gente sem máscara se aglomerando; vi gente dizendo que é só uma gripezinha.

Desisti de passar qualquer mensagem para minha pequena, aliás estou quase agradecendo por me trazer problemas prosaicos para lidar, por me permitir viver histórias de fantasia com ela. A realidade está pesada demais e eu tenho a sorte de ter dragões,sereias, piratas, bruxas e fadas circulando por dentro de casa, mesmo que eventualmente se “acidentem” e causem alguns prejuízos. Aqui estamos mais seguros: nós e os seres mágicos.

Comentários

  1. Achei ótimo o desenrolar da história. Você escreve muito bem, com imaginação e naturalidade.

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