Política é assunto de criança

     Eu tinha 9 anos, era agosto ou setembro de 1989, nos aproximávamos das eleições presidenciais. Na minha casa não se falava em outra coisa. Todos pareciam ansiosos, animados, mas apreensivos. Me lembro até hoje o voto dos mais próximos. Minha avó e minha dinda votavam no Lula. Minha mãe no Roberto Freire (desculpa mãe, por revelar isso). Meu pai no Mário Covas (não preciso pedir desculpa, porque os dois já morreram).

    Era uma atmosfera muito interessante. O meu “voto” oscilava entre esses candidatos, mas incluía o Ulisses porque eu não tinha avô e achava ele com cara de vovô. Minha dinda ligava para falar comigo e me perguntava:

    - Pra quem vai teu voto hoje?

    E eu respondia, justificava meus argumentos e me sentia a pessoa mais importante do mundo. Me incomodava o fato de não ter uma menina para colocar entre minhas possibilidades do voto (na verdade tinha uma candidata, mas com pouca expressividade). Uma vez comentei isso com a minha vó e ela me contou que quando ela nasceu as meninas não podiam votar e que até pouco tempo ninguém votava. Fiquei chocada.

    Minha mãe tinha um fiat 147 que só tinha rádio, ouvíamos todo o horário político na volta do colégio. O jingle do Lula era encantador, botávamos no volume máximo e cantávamos animadamente junto com aquelas caixas de som estridentes.

    Um dia chegou lá em casa, pelo correio, uma caixa de santinhos e adesivos do Mário Covas. Meu pai oficialmente estava em campanha. Ele me chamou e me fez uma proposta irrecusável: Eu pegaria minha bicicleta, encheria a cestinha com aquele material e colocaria nas caixas de correio da vizinhança, em troca ele me pagaria o valor suficiente para que eu comprasse todas as figurinhas que faltavam para meu álbum dos Ursinhos Carinhosos. Precisava do dinheiro e aceitei (desculpem antigos vizinhos). Fiz até boca de urna, o que não se faz por um álbum de figurinha completo! Vamos deixar claro que aceitei o trabalho, mas não vendi meu “voto”. Ás vezes fazemos coisas por dinheiro que depõe contra a nossa biografia.

    O assunto era tão presente que acabava o jornal nacional e minha avó ligava lá para casa para saber se tínhamos visto a última pesquisa. Eu adorava brincar de jornal nacional, fazia gráficos das intenções de voto, mas nas minhas pesquisas só apareciam os candidatos da família, ah e o Ulisses, claro. A parte mais legal do meu jornal eram os créditos. Escrevia todos eles em papel de impressora matricial que meu pai trazia do trabalho para eu brincar, os escondia atrás das almofadas que compunham minha bancada e quando acabava puxava eles com as mãos bem rápido, enquanto meu atento e assustado público saía (duas gatas, duas poodles e às vezes a caturrita).

    Finalmente chegou o dia das eleições. Meu pai me convidou para votar com ele e fiquei muito impressionada quando ele me disse:

    -Essa eleição é muito importante. É a primeira vez que voto para presidente.

    Depois fui votar com minha mãe, minha avó e minha dinda. Todos me deixaram fazer o “x” nos seus respectivos candidatos. Dali para diante sempre votei tanto com meu pai como com minha avó (os dois mais interessados em política) até eles morrerem, virou tradição. Aprendi com eles que voto é um direito muito mais que uma obrigação e é preciso zelar por ele ou não nos fazem essa “concessão”.

    Nunca ninguém me disse que política não era assunto de criança, ou que não era para eu me meter na conversa. Sempre fui ouvida e incentivada a desenvolver meu pensamento crítico, a defender minhas próprias opiniões e respeitar as dos outros. Não via pessoas brigando por política na minha casa, via pessoas discutindo com embasamento teórico, respeito e educação. Pessoas que pensavam completamente diferente, mas que eram educadas e capazes de sustentarem um debate.

    Cresci e com 16 anos tirei meu título de eleitor. Finalmente pude assinalar meu próprio “X” na cédula. Meus candidatos não eram os mesmos do meu pai. Os meus saíram vencedores e ele me ligou (acompanhávamos a apuração em lugares diferentes) para me parabenizar por pela primeira vez ter eleito os meus candidatos e para me liberar para a festa na rua.

    Já adulta tive o prazer de ver finalmente uma “menina” ser candidata a presidente, ser eleita, reeleita e o desprazer de vê-la ser tirada do poder em um processo misógino e sexista. Vi, já acompanhada da minha filha mais velha, aquele circo machista vergonhoso ser montado e apresentado para a sociedade.

    De lá pra cá a política foi ficando mais triste, mais vazia. Cansei de ouvir “Aquilo tudo lá, tá ok”. Quando as pessoas que proferem as palavras não sabem nem o que é “tudo”, “aquilo”, “lá”, “tá” e “ok”. Me causa muito desconforto o nível de desinformação e ver que as pessoas que encabeçam esse movimento querem que cada vez mais gente não saiba o que é “tudo”, “aquilo”, “lá”, “tá”, “ok” para que não possam ser contestados.

    Minhas filhas, assim como eu acompanhei política desde pequena, acompanham conosco o que acontece. Não temos mais uma frigideira com fundo plano, de tanto que já batemos panela em família. Tudo que aprendemos na vida nos é ensinado e ensinar a pensar é essencial. Não adianta não falar sobre cidadania, direitos, privilégios, preconceitos e dar um título de eleitor para o ser humano quando fizer dezoito anos, porque a pobre criatura não saberá para que aquilo serve. Há grandes chances de usar para limpar a bunda.

    As meninas aqui em casa nos acompanham na votação desde que nasceram e apertam os números dos candidatos. Esse ano foi a primeira vez que elas não foram, devido a pandemia. Mas assim que cheguei em casa recebi a pergunta:

     - Mamãe tu votou em mulher, né?

    Sinal que estamos tendo frutos.

    Essas eleições foram um pouco mais triste, pelo contexto nacional e mundial e porque não tive a companhia delas na cabine de votação, mas por outro lado algumas coisas me emocionaram e deram um certo acalento para esse coraçãozinho posicionado bem à esquerda do peito.

    Ver uma mulher negra, jovem ser a vereadora mais votada de Porto Alegre (minha cidade) e saber que colaborei com isso foi esperançoso.

    Ainda no âmbito municipal, acompanhar a Fernanda Melchiona ser mais fofa que coice de unicórnio (muito me identifico com isso) com todos os candidatos machistas que tivemos aqui(e não foram poucos) me trouxe um sopro de alegria. Fez lindo encabeçando o paradigma da tolerância. Há coisas que não podem ser toleradas e discriminação de gênero é uma delas.

    A capacidade de enfrentamento e combate da Manuela D’Ávila em uma guerra suja onde as armas são as fake news, em sua imensa maioria de baixíssimo nível, contra ela e a sua família me impressiona. A violência de gênero que ela vem sofrendo provoca ânsias e ganas em qualquer pessoa que acredita em um mundo mais igualitário. Eu não aguentava uma hora como ela aguenta há anos.

    No espectro nacional saber que este foi o ano que mais pessoas da comunidade LGBTQI+ foram eleitas foi lindo, tornou, sem dúvida, meu dia mais colorido.

    E talvez o que tenha mais me emocionado tenham sido as imagens de campanha da Luiza Erundina. Me seguro para não colocar ela de plano de fundo no meu celular, só não fiz isso porque minhas filhas são muito fofas. Ver aquela mulher que tem a mesma idade do voto feminino no Brasil ainda na luta me encanta. Me encanta ver o gás, a lucidez. Ela podia estar em casa fazendo bolo e tricotando, mas ela está lá lutando ano, após ano. Ela está lá sentando na cadeira do presidente da câmara para impedir que mulheres percam seus direitos duramente conquistados. Às vezes me pergunto se nós enquanto sociedade e comunidade “esquerdopata” não fomos capazes de nos reinventar para ter sucessoras para Erundina. Não, a questão não é essa, na verdade ela se reinventou, não à toa integra o partido de esquerda que mais cresceu nessa eleição. Ela não ficaria em casa esperando o mundo acontecer, ela faz acontecer.

    “Isso”, “tudo”, “aí” me encantou, me animou, me deu esperança e me diz que para seguir na micro militância no micro ambiente, “tá” “ok”?

    Que venha o segundo turno!

Comentários

  1. Belíssima história!!!! Se tivesse filhos, também os levaria comigo para votar. Na esquerda, sempre.

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