O abraço do carboidrato

 

Eu tinha 4 ou 5 anos quando meu pai infartou a primeira vez. Primeiro contato mais próximo com a morte, com perder alguém querido. Podia ter sido com um gato, um cachorro, mas não, logo o pai. Me lembro de perguntar para minha mãe se ele ia morrer e ela com toda a honestidade e sutileza, que só quem a conhece sabe que ela é capaz de ter, responder:

- Não sei, mas pode ser que sim.

A honestidade materna sempre foi uma virtude, sempre me preparou para o pior. Tinha que tomar injeção ou pontos e eu perguntava:

-Vai doer?

E ela respondia:

-Vai.
Nesse primeiro infarto do meu pai descobri muitas coisas além da honestidade da minha mãe. Descobri que somos mortais. Descobri que um fumante sem cigarro pode ser alguém muito chato e descobri que não devíamos comer dois amidos ao mesmo tempo.
Eu do alto dos meus 5 anos e do recente conhecimento adquirido dizia para quem quisesse ouvir:

-Não se come dois amidos na mesma refeição. Não se como arroz com massa, batata com arroz, salada de batata com massa.…

Foi nessa época que comecei a conhecer a má fama do carboidrato (amido é um carboidrato). Pobre carboidrato! Tão mal visto! Sempre leva a culpa pelas nossas panças e bundas. Dizem que colabora até com nossas artérias entupidas. Logo ele que é uma das materializações do amor. Quem não teve uma avó, uma tia, uma mãe que fazia no aniversário um pão de ló lindo (às vezes era feio que doía, mas o que vale é a intenção) cheio de merengue e confeitos coloridos? A mais pura expressão de amor, de carinho e dedicação.

Um pãozinho com manteiga é quase como uma abraço apertado na língua. Se deixar um pouco na boca parece que ele deita de conchinha com as papilas gustativas. Em tempos de distanciamento social, de poucos abraços como condenar o carboidrato? Não surpreende que quando começou a pandemia e descobrimos que precisaríamos ficar afastados fisicamente, sem grandes abraços, um monte de gente começou a fazer pão loucamente.
São os abraços que não pudemos dar ou receber emitidos na sova da massa.

O carboidrato é tão sentimento que revela a perversidade da nossa sociedade. Enquanto uns o tem em abundância é até o evitam em busca de um corpo perfeito, outros, em número crescente, não podem tê-lo para o sustento do próprio corpo. A sua ausência por falta de opção revela o desamor, o descuidado, o desgoverno. É a representação do abismo social. É o precipício da mesa que nos coloca de volta no mapa da fome (do qual havíamos saído há poucos anos). Somos distanciados social e economicamente pela capacidade de compra de um saco de arroz. Não, por favor, não seja injusto com a pandemia, assim como muitas vezes somos com o carboidrato. Retornamos ao mapa da fome não pela pandemia, mas por uma política de mal estar social onde miseráveis são essenciais para sustentar uma ínfima parcela super-rica e torná-la cada vez mais rica. Não condene o carboidrato, reconheça o privilégio por poder tê-lo. Reconhecer nossos privilégios é um dos primeiros passos para mudar realidades.

E sabe qual é outra baita demonstração de amor ao próximo? Políticas públicas de qualidade. Eleições municipais estão aí! Você já tem o seu carboidrato garantido (pelo menos por enquanto), mas tem um monte de gente nas esquinas e fora delas, no meio de uma pandemia, morrendo de fome. Muitas crianças com menos de 5 anos de idade estão descobrindo a mortalidade da pior forma possível, morrendo por não ter o que muitos de nós, privilegiados, evitamos.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Fica bem 2023

A pontezinha do Sakae's

Rituais de final de ano