Coisada

 

- Oi como você tá?

- Tô coisada.

Coisada é um estado de espírito. Você não está nem bem, nem mal, está coisada. Com a coisa. Parece, num primeiro momento, algo físico/biológico, mas logo percebemos que vem da cabeça. É como se a coisa (aquela do filme “a coisa”) se formasse no nosso cérebro e através das artérias (mesmo que no contrafluxo) chegasse ao abdômen e lá se instalasse, feito poliuretano expandido, entre o esôfago e o reto. É aquela sensação de acordar, abrir os olhos e pensar: tomara que seja tudo um pesadelo ou que eu tenha acordado bem burra, mas se dar conta que nenhuma das duas coisas aconteceu. Uma vontade de dormir e só acordar quando a coisa for embora. Mas daí você ouve "manhêêê" ou qualquer outro chamado inadiável e lembra que não dá, que vai ter que fazer, pelo menos o mínimo, mesmo coisada. Dá um desânimo imenso com a vida, uma falta de energia sem tamanho. Não é tristeza, não é infelicidade. Tá mais pra cansaço, falta de perspectiva. Um sei lá geral. É desesperança.

Quem nunca tinha ficado coisado na vida está tendo uma oportunidade única no Brasil de 2020. Não há como passar imune a coisa. É muita informação e ação desumanitária para um cérebro suportar sem dar nem uma coisadinha. Às vezes parece que estamos em um universo paralelo, do lado errado da parede do "Stranger Things". Não bastam os problemas pessoais que todos nós naturalmente já temos, tem aquela enxurrada de problemas gerais que escorrem pelos dedos e não é possível solucionar sozinha, que precisa do coletivo que está perdido, que precisa da rua pra gritar que não dá pra ir porque a chance de abraçar o coronavírus está grande. A incerteza do futuro, nunca foi tão certa. Não dá pra fazer nem um plano (nem de fuga, pois como já escreveu a Claudia Tajes, estamos fechados com Bolsonaro, literalmente, sem uma fronteirinha aberta). É impossível não coisar quando vemos os nossos direitos serem saqueados a luz o dia. Os direitos das ditas minorias, os direitos das mulheres, aos poucos vão se indo. Enquanto não sabemos pra onde olhar, porque todas as paisagens estão enfeiando, nossos direitos vão sendo levados e ao questionarmos sempre terá alguém para dizer que não somos dignas deles. Até Margaret Atwood já declarou ver seu romance distópico se desenhar por aqui. Provavelmente June Osborne ficou coisada em muitos momentos até chegar a Offred. Temos até nossa tia Lydia tupiniquim e o que choca não é ela, mas sim a quantidade de gente que com ela se identifica.

Difícil olhar pra frente em um país que engatou marcha ré e vai desgovernadamente em busca de um passado que não cabe mais. Pensar que talvez queiram te fazer caber nesse passado é muito coisante (ação que leva a coisa, que leva ao estado de coisada). Pelo jeito 2020 não vai ser o ano que não existiu, vai ser o ano que existiu intensamente coisado e a pandemia é o menor dos nossos problemas.

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