Epidemia de cursos
A pandemia deu origem a uma epidemia de cursos online. Tem curso de tudo para todos os gostos. Eu mesma já fiz três. Dois eu conclui. Ganhei até certificado pra provar que não passei a quarentena no ócio, entre delírios de vou sobreviver, vou morrer ou vai morrer alguém que amo. Nos certificados deveria vir escrito: certifico que fulana/o conseguiu concluir um curso no meio de uma pandemia histórica. Daí daqui uns 40 anos eu velhinha com voz trêmula poderia me vangloriar para os meus netos “Não só passei pela pandemia, como fiz dois cursos” e teria como provar. O terceiro curso que me inscrevi achei chato pra caramba e larguei no meio.
Sei de gente que está com a agenda cheia.
Quase não tem tempo pra assistir live de tanto curso que resolveu
fazer. E também tem aqueles que viraram reféns dos cursos dos
amigos.
Tem uma conhecida, coitada, que está nessa situação.
Incentivou três amigas que precisavam de uma alternativa de renda a
ministrarem cursos online
e ficou presa nos cursos sem conseguir sair. Começou de forma
despretensiosa. Deu a ideia pra amiga. A amiga achou boa e montou o
curso. A chamou pra aula inaugural e de lá ela não conseguiu sair
nunca mais. Tentou achar desculpa, mas em tempos pandêmicos não
temos muitas. Agora toda a semana ela pensa em dizer que a internet
não funcionou, mas não tem coragem e lá vai ela fazer os cursos
que não escolheu, mas que por consideração se faz presente.
No fundo acho que nos dias que ela está
refém dos cursos deixa de ser refém da realidade brasileira e isso
no fim também pesa para que ela continue apoiando as amigas.
Nos
dias dos cursos ela esquece por algumas horas que o país é
conduzido na maior crise sanitária por um ser que não progrediu na
linha evolutiva. Esquece que há mais de 3 meses é como se caíssem
mais de 4 aviões por dia no país e todos os passageiros morressem.
Esquece que os grandes empresários alegam que o comércio precisa
ser reaberto, porque se não famílias morrerão de fome, enquanto
sabemos que eles não estão nem aí para as famílias e sim para que
suas contas continuem bem gordas e seus funcionários cada vez mais
pobres e explorados. Esquece os números absurdos da
violência doméstica
que apareceu de forma mais gritante com a pandemia, mas que todos
sabemos é um problema estrutural nesse país e que mais dia menos
dia ficaria insustentável. Esquece que as escolas particulares
gritam aos quatro ventos que precisam voltar a funcionar e em nenhum
momento parecem preocupadas com a saúde de seus alunos, mas sim com
sua saúde financeira e essa deveria ser socorrida pelo estado e não
pelo sistema imunológico de crianças. Esquece que a boiada está
passando na Amazônia. Esquece que
vivemos no país que mais mata e agride LGBTQI+. Esquece o racismo
institucionalizado. Esquece dos 89
mil depositados por Queiroz na conta da primeira-dama. Esquece das
rachadinhas. Esquece da vontade do estado de silenciar às vozes
pensantes a socos na boca. Por algumas horas na semana só esquece.
Por alguns momentos, pela sanidade é bom ser raptada por outra coisa
e deixar de ser refém e do Estado de Exceção Permanente.
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