Os 44 anos do meu pai
Há mais ou menos 33 anos atrás meu pai e minha mãe resolveram dar
uma super festa! Fazia um ano que meu pai tinha infartado e o
aniversário dele estava próximo. Para comemorar a sobrevivência do
ano anterior resolveram que fariam uma grande festa de aniversário.
Uma amiga muito próxima deles que fazia aniversário um dia depois
se uniu a comemoração e a festa virou comemoração de um ano do
infarto, do aniversário do meu pai e do aniversário da amiga.
Dia 18 de agosto de 1987 (dia do aniversário de 44 anos do meu pai)
teve a festa e ela foi inesquecível, mas não necessariamente pelas
comemorações. Morávamos em uma casa grande, então era um festão
mesmo, com garçons contratados para servir as pessoas, um primo da
minha mãe era responsável pela música e pelo bar. Eu ia fazer 7
anos e talvez essa tenha sido uma das primeiras festas com muita
gente de que eu tenho lembrança. Os convidados eram bem
heterogêneos. Estava presente a família do meu pai, da minha mãe e
da amiga que comemorava junto o aniversário, além de amigos de todo
mundo e as pessoas não necessariamente conheciam meu pai e minha
mãe, alguns tinham ido por causa da amiga.
Me lembro que fazia muito frio e que conforme as pessoas chegavam
todas encasacadas, os casacos eram colocados em cima da minha cama,
porque meu quarto era o que ficava mais perto da sala de estar.
Recordo dos adultos falando alto, rindo e se divertindo e as crianças
também. Eu e meus primos estávamos achando aquilo tudo encantador.
Lá pelas tantas minha tia (irmã da minha mãe) resolveu ir ao
banheiro. Foi ao banheiro que ficava na frente do meu quarto. Quando
chegou lá minha avó paterna que estava saindo falou pra ela que não
estava se sentido bem. Minha tia achou ela meio pálida e pensou:
“Essa velha deve ter tomado uns Whiskys a mais.” O que não era
de se duvidar, porque minha avó era chegada num destilado pegado,
mas por via das dúvidas chamou meu tio por parte de pai ( ou seja
filho da minha avó) que é médico. Meu tio chegou lá e viu que a
questão não era o whisky e sim que minha avó estava tendo um
ataque cardíaco. Rapidamente ele levou ela para dentro do meu quarto
e pediu que minha tia chamasse uma ambulância. Ele, sem nem pensar,
deitou minha avó no chão do lado da cama onde estavam com os
casacos de todos os convidados. Enquanto isso a festa bombava, porque
ninguém tinha visto o que estava acontecendo. Minha avó logo teve
uma parada cardíaca, meu tio tentou ressuscitá-la com a ajuda da
minha outra tia, mas nada e nada da ambulância. Minha avó morreu
enquanto a festa rolava. Ninguém fez um comunicado oficial, mas a
notícia começou a circular entre os convidados e rapidamente a
reunião de pessoas passou de confraternização para velório. Há
quem diga que ela morreu como sempre viveu, estragando a festa dos
outros. Eu pessoalmente não compactuo com essa versão, acho que ela
morreu sem passar despercebida, na verdade teve uma morte no mínimo
memorável.
Num primeiro momento os garçons pararam de servir vinho e alguém
baixou o volume da música. Minha mãe solicitou que subissem o
volume da música e seguissem com o vinho, porque realmente tinha
muita gente na festa e tinha gente que nem conhecia meu pai ou minha
avó. Mesmo com música e vinho, obviamente, e desculpa o trocadilho
infame, a festa começou a morrer e algumas pessoas começaram a
querer ir embora, mas daí surgiram outros problemas. Primeiro as
pessoas não sabiam o que dizer aos aniversariantes: se davam
parabéns ou pêsames. Segundo a minha avó estava morta ao lado da
cama com os casacos, então para pegar os pertences dos convidados
era preciso passar por cima dela e os casacos eram daqueles casacões,
pois moramos em Porto Alegre e no inverno aqui é bastante frio.
Minha mãe e minha tia, que eram as responsáveis por devolver os
casacos, cada vez que tinham que pegá-los e passavam por cima da
defunta tinham ataques de riso, porque já estavam meio bêbadas.
A noite foi tão nonsense que a funerária para recolher o corpo
chegou antes da ambulância que havia sido chamada. Os guerreiros que
permaneceram na festa foram virados para o velório no dia seguinte.
Provavelmente muita gente que nem teria ido ao velório foi, porque
estava lá e por não saber o que fazer, por empatia, por civilidade,
por consideração ao próximo resolveu se fazer presente. Alguns nem
sequer conheciam meu pai ou minha avó, mas por sua humanidade se
colocaram no lugar dele e de alguma forma se enlutaram por fazer
parte daquela história. Se a minha avó por acaso estivesse viva
hoje, talvez ela morresse de covid 19, ela faria parte da história
do país, e provavelmente seria só mais um número para todo mundo
que está fazendo festa enquanto o país mira os oficiais 100 mil
mortos. Ainda bem que ela morreu quando empatia e civilidade ainda
estavam na moda.
Caraca!!! Que história! Se fosse escrita para um roteiro de telenovela, seria a cena de ibope mais alto.. e a gente acaba assim, rindo com culpa.. eis a vida e a humanidade.
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