Não acostume-se ao inaceitável
Nós
estamos vivendo uma espécie de matrix há mais de noventa dias (pelo
menos eu e umas outras 20 pessoas que estão fazendo isolamento
social no Brasil). Vivemos uma realidade virtual. Visitamos os amigos
digitalmente, faço compras digitalmente, fiz o aniversário da minha
filha mais moça por chamada de vídeo, o contato com a escola das
minhas filhas é virtual e por aí vai. Estou sempre esperando que os
cabos conectados a mim sejam desconectados, mas nunca acontece. Às
vezes, quando a internet cai,
é o mais próximo que chego da desconexão.
Se
há algo que me impressiona nisso tudo é nossa capacidade de
adaptação. O ser humano é altamente adaptável para as coisas
ruins e boas. Me lembro que quando minha filha mais velha tinha um
pouco mais de dois anos quebrou o bracinho e eu pensei: coitada vai
ser uma complicação esse braço sem funcionar, para brincar, para
escalar. Que nada! Menos de duas horas depois do braço engessado,
ela parecia nunca ter tido braço.
Não
foi diferente com a nossa auto quarentena (que já quase pode ser
chamada de centena). Num primeiro momento um certo incômodo, a
criação de uma rotina para ficar o máximo possível em casa (e nós
realmente saímos pouquíssimas vezes nesse período), explicamos
para nossa filha mais velha, que hoje tem 8 anos, o que estava
acontecendo. Ela automaticamente entendeu e se resignou a ter que
ficar em casa. Nossa filha menor, que tem agora 3 anos, teve mais
dificuldade de compreensão e no início ficou mais contrariada, mas
de forma geral se saiu bem também. Claro que há alguns momentos de
chateação, de saudade da época que sair estava liberado, mas sem
maiores dramas. De forma geral nos adaptamos, claro que amaríamos
voltar à vida de antes,
mas se for preciso passar mais um tempo assim (ao que tudo indica
será) tiraremos de
letra. Chegamos num ponto que minha filhota mais velha não diz mais
“quando a quarentena acabar” e sim “se a quarentena acabar”.
Ela também criou sua forma digital de se relacionar com o mundo,
quase todos os dias fala com alguns amigos, às vezes é uma chamada
de vídeo com vários amiguinhos, outras vezes apenas com uma amiga
mais próxima. Com essa amiga, que é bastante próxima, ela
fala quase todos os dias e muitas vezes elas fazem um negócio
muito louco (pelo menos pra mim que nasci na década de 80). Elas
fazem chamada de vídeo pelo meu celular e pelo celular da mãe da
amiga e nos aparelhos delas (celular e tablet) elas ficam jogando o
mesmo jogo que é um mundo virtual, no qual elas se encontram. Então,
quando uma não consegue fazer alguma coisa, ou descobre alguma coisa
nova no jogo elas mostram a tela do jogo, pela tela da chamada de
vídeo. E assim elas passam um bom tempo, andando pelos mais diversos
cômodos da casa e pelos mais diversos lugares do mundo virtual.
Esses
dias algo inusitado aconteceu. Eu ouvia o som do jogo vindo do
banheiro, por um minuto achei que ela tivesse levado a amiga para o
banheiro, mas não. Quando entrei no meu quarto para guardar umas
roupas me deparei com a amiga no mudo, falando, mas não saía som.
Abanei pra amiga que me abanou de volta e eu e minha filha tivemos um
diálogo surreal:
-
Minha filha, o que tua amiga faz em cima da minha cama?
-
Ela não tá na tua cama. Eu já desliguei o celular e te devolvi.
-
Olha eu to aqui no quarto e acabei de abanar para ela, que não sabe,
mas tá no mudo.
Nisso
ela saiu correndo do banheiro e veio retomar a conversa com a amiga e
tirá-la do mudo.
Saí
do quarto e fiquei pensando nisso. Como de fato somos seres
adaptáveis. O que é ótimo por um lado, mas péssimo por outro.
Ótimo porque superamos adversidades.
Péssimo porque às vezes nos acostumamos com o inaceitável. Nos
acostumamos que morrem muitos, nos acostumamos com criminosos no
comando do país, nos acostumamos a perder direitos, nos acostumamos
a ver pessoas passarem fome, nos acostumamos com os abusos de
autoridade, nos acostumamos com impostos e taxas de juros absurdas,
nos acostumamos com a censura, nos acostumamos a não ser ouvidos, a
ser colocados no mudo por quem governa o país. Não aceite ser
mutado!
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