A consulta
Antes de começar toda essa loucura pandêmica fui à dentista para
fazer uma revisão. Eu e meu marido, como somos um casal fofo, vamos
na mesma clínica e marcamos sempre consulta uma depois da outra com
a mesma dentista que já nos atende faz alguns anos. Nessa mesma
clínica também levamos as crianças para consultar com a dentista
pediátrica. Há uns anos a nossa dentista, descobriu que eu tenho
uma degeneração da articulação do maxilar, uma coisa
assintomática, mas que inspira atenção, por isso ela sempre começa
minha consulta fazendo um exame desta articulação e me faz algumas
perguntas para ver se está tudo normal.
Nessa última consulta tudo foi mais ou menos igual. Fomos para o
consultório com nossos dois horários marcados. Eu fui a primeira a
ser atendida. Ela examinou minha articulação e começou com as
perguntas:
- Alguma alteração?
- Não.
- Ouve algum estalo quando fala ou mastiga?
-Não.
- Sente alguma dor ou incômodo em alguma situação cotidiana,
ou mesmo esporádica?
- Sim! Quando faço boquete! Quando estou chupando um pau,
dependendo da posição da minha cabeça e do pau em questão, sinto
um leve incômodo na articulação, mas nada que atrapalhe a vida
porque é só mudar de posição que fica tudo bem!
Rebobina a fita.
Isso é o que eu deveria ter dito.
O que eu disse foi só:
- Não, tudo normal!
Enquanto isso, dentro
da minha cabeça passava a primeira resposta que escrevi.
Agora, porque eu respondi que estava tudo normal considerando que
não havia nada de errado em fazer sexo oral quando as pessoas
envolvidas não estão sendo forçadas a isso? Bom, muitas coisas me
levaram àquela resposta básica e mentirosa. Primeiro eu tava
falando do pau do meu marido que estava sentado na sala de espera e
da minha boca e o meu marido entraria logo em seguida para sua
consulta sem ter consciência do que se passou na consulta anterior.
Isso por si só já me constrangeu, mesmo sabendo que ele não
ficaria constrangido. O fato dela conhecer todo o meu núcleo
familiar, também foi um pouco desestimulante, mesmo achando que ela
sabe que os bebês não vem da cegonha. Vivermos em uma realidade
brasileira tão retrógrada também não foi um elemento atrativo.
Somos pacientes da dentista há algum tempo, mas não sei se ela não
acredita em mamadeira de piroca, em kit-gay e em todas as fake
news de cunho sexual que o atual governo gosta tanto de propagar.
Não fui criada em uma família religiosa que considerasse que sexo
era só pra procriar. Pelo contrário, sexo sempre foi algo falado e
jamais condenado. E mais uma vez: porque não usei de toda minha
capacidade de expressão para dizer pra ela o que se passava? Azar
dela se achasse estranho, se tivesse um “causo” para contar para
os amigos, eu não teria falado nada demais, apenas da minha
articulação e de sexo oral, coisa que qualquer pessoa que tenha ou
teve vida sexual ativa conhece.
Me parece que quando temos uma onda conservadora como a que vivemos
nesse momento, nos censuramos, quase como autoproteção, mas na
verdade o que precisamos é o contrário, nos expressar livremente.
Falar sobre sexo e sexualidade é tabu? Sim, sem dúvida, mas se
deixamos os preconceitos nossos (sim, todos temos!) e dos outros nos
censurar incorremos em algo muito pior que é o silenciar. Tudo que é
silenciado, deixado na obscuridade é perigoso, nos conduz a caminhos
violentos e mais preconceituosos ainda. Precisamos deixar os
preconceitos de lado e criar conceitos.
Se não falamos sobre sexo abertamente mais pessoas sofrem violência
sexual e não se sentem seguras para verbalizar e nem tem o
conhecimento para se entenderem como vítimas. Se pararmos para
pensar com um pouco mais de atenção o sexo surge como elemento
forte para perpetuar preconceitos de várias naturezas. Quem nunca
ouviu que negro tem pau grande; japonês pau pequeno; mulher negra é
da cor do pecado; que velho não trepa; que lésbica é falta de
homem; que fulano é um arrombado; que macho que é macho não faz
exame de próstata; que não pode deixar a menina perto dos primos;
que mulher direita não se expõe; que homem que é homem come todo
mundo; que tem mulher pra se divertir e mulher pra casar; e por aí
vai.
O fato é que quando se vive algo tão dantesco como o movimento
ultra conservador brasileiro, a galera que prega a moral e os bons
costumes, se abraça em uma bíblia qualquer, pega suas taras e sai
pregando, estigmatizando e condenando o sexo e a sexualidade em uma
forma clara de dominação sobre as pessoas, e a lábia é boa,
porque tem muita gente que cai nessa conversa. Não é atoa que
grande número das fake news propagadas hoje no Brasil tem
alguma conotação sexual. Por outro lado, quem não se encaixa nesse
perfil precisa combater esse comportamento, fazendo justamente o
oposto. Falando abertamente. Criando mecanismos para que crianças e
adolescentes tenham conhecimento adequado e de qualidade sobre
sexualidade. Incentivando a fala aberta de mulheres, pessoas lgbtq+
para que não tenham seus direitos questionados e não sofram
violência de diversas formas. Condenando todas as formas de
preconceitos de gênero, raça, orientação sexual e tantos outro
que se perpetuam em nossa sociedade.
Prometo que na próxima consulta serei sincera com a dentista e
comigo mesma. Talvez, use termos mais técnicos do que os mencionados
na minha resposta imaginária para evitar o constrangimento,
dela e meu.
Comentários
Postar um comentário